Ademar de Barros é lembrado por suas obras e pelas várias suspeitas de desvio de dinheiro público
Marli Guimarães Hayashi
Uma das “tradições” da política brasileira é a do “rouba, mas faz”, sobre o governante que enfrenta denúncias de corrupção ao longo do mandato, mas é querido pelo povo por causa das obras que realiza. Ex-governador de São Paulo e ex-prefeito da capital paulista, Ademar de Barros (1901-1969) até hoje é identificado com esse “lema”. Entre o início de sua carreira como deputado estadual, em 1934, e sua cassação pelo regime militar, 32 anos depois, ele colecionou feitos administrativos, suspeitas de desvio de dinheiro público e muita polêmica.
Nascido em Piracicaba em 22 de abril de 1901, Ademar já era médico, tinha o brevê de piloto de avião e estava casado quando entrou para a política, em 1934. Recém-chegado da Argentina, onde se exilou após participar do movimento constitucionalista de 1932 – organizado pelos paulistas para a convocação de uma Assembleia Constituinte pelo presidente Vargas –, foi convidado a se candidatar a deputado estadual na Constituinte de 1934 por um tio, José Augusto de Resende, chefe de uma seção regional do Partido Republicano Paulista. Ademar respondeu que aceitaria a oferta, mas anunciou que deixaria o cargo três meses após assumi-lo para voltar à medicina.
Ademar foi eleito, ocupou sua cadeira na Assembleia Legislativa, e após três meses teve a promessa cobrada pelo tio. Respondeu que cumpriria o mandato até o fim: “Tomei gosto pela danada”, ou seja, a política.
A “danada” levaria Ademar longe em pouco tempo. O salto foi dado em 1937, quando Getulio Vargas (1882-1954) inaugurou a ditadura do Estado Novo. O Senado, a Câmara e as Assembleias Legislativas foram fechados e os partidos, extintos. E mesmo tendo feito discursos pouco elogiosos a Vargas na tribuna, o então deputado foi nomeado interventor (cargo equivalente a governador) de São Paulo em abril de 1938.
A explicação mais aceita é que Filinto Müller (1900-1973), chefe da polícia do Estado Novo, foi o responsável pela escolha. Uma reportagem feita pelo jornal Diário de Notícias anos depois, em 28 de setembro de 1955, revelou a versão que corria até entre os amigos do político paulista: a interventoria teria sido uma retribuição de Filinto por serviços prestados após a instalação da ditadura, quando Ademar denunciou supostos conspiradores à polícia. Segundo Alzira Vargas no livro Getúlio Vargas, meu pai, o próprio Vargas respondeu, em uma entrevista, que não havia seguido nenhuma indicação ao nomeá-lo, mas acabou revelando: “Suspeito que ele era protegido de Filinto”.
Durante o período em que foi interventor, entre 1938 e 1941, Ademar começou a acumular lendas em torno da sua figura. Após poucos dias no cargo, em 1º de maio de 1938, o jornal Correio Paulistano publicou uma nota comentando que, em São Paulo, era sabido que ele começava a trabalhar cedo e ia até altas horas. A fim de comprovar o boato, um repórter do jornal teria ligado às duas horas da madrugada para o Palácio e o próprio interventor teria atendido o telefone, dizendo que estava no trabalho desde as sete da manhã do dia anterior.
Era o início de uma intensa propaganda, veiculada pelo próprio Ademar e por assessores, que caracterizaria o político. Sua ideia era consolidar a figura de administrador competente, realizador de grandes obras públicas e, devido à sua formação médica, político de preocupação social. Destacava-se a execução de “obras titânicas”, como a construção das rodovias Anchieta, iniciada em 1939, e Anhanguera, em 1940, e do Hospital das Clínicas, que começou em 1938. As obras do Aeroporto de Congonhas teriam se iniciado em 1936, mas a propaganda ademarista divulgava que Ademar teria sido responsável por várias obras e remodelações do aeroporto. Um admirador do político, Alvaro José de A. Franco Ribeiro, autor do livro Lápides e aspectos: São Paulo na iniciativa de um estadista famoso, declarou que visitar São Paulo sem ver as obras de Ademar era como ir ao Vaticano e não ver o papa. Leonor Mendes de Barros (1905-1992), sua esposa, contribuía para a exaltação da imagem de Ademar organizando festas para crianças carentes no Natal, com distribuição de brinquedos, e promovendo bailes a fim de arrecadar fundos para maternidades e hospitais infantis.
Enquanto a imagem de “político que faz” era consolidada, a de “político que rouba” começava a despontar. Durante a gestão de Ademar, surgiram denúncias de peculato e enriquecimento ilícito que levaram Vargas a afastá-lo da interventoria em junho de 1941. Mas as suspeitas não impediram que em 1947 ele fosse eleito governador para um mandato que se estendeu até 1951.
As denúncias que mais estragos causaram à imagem de Ademar saíram no jornal O Estado de S. Paulo em junho de 1954. Foi uma série de reportagens intitulada “O meu destino é o Catete”, inspirada numa frase atribuída ao ex-governador: “O meu sonho, o meu destino é o Brasil, é o [Palácio do] Catete”. Em 17 matérias, a origem da fortuna do político era questionada pelo jornalista Paulo Duarte, apontado como criador do slogan “rouba, mas faz”, embora não haja comprovação dessa autoria. A inspiração teria sido uma frase do próprio Ademar.
Entre as denúncias estava o “caso dos Chevrolets”. Em 1949, quando governador, Ademar teria comprado, com dinheiro público, 11 automóveis e 20 caminhões da General Motors. Depois de efetuado o pagamento, teria pedido à montadora que refaturasse os veículos em nome de outras empresas. Em seguida, os carros e caminhões teriam sido distribuídos a seus parentes e amigos e a firmas de sua propriedade. Cerca de 15 dias após as denúncias, o Ministério Público abriu um processo contra o ex-governador e pediu sua prisão preventiva.
Em março de 1956, o Tribunal de Justiça de São Paulo condenou Ademar à pena de dois anos de reclusão e suspendeu seus direitos políticos por cinco anos. Mas no dia 9 de maio, o Supremo Tribunal Federal o absolveu das acusações por unanimidade.
Livre das denúncias, foi eleito prefeito de São Paulo em 1957, conquistando a única vitória eleitoral em meio a uma série de quatro derrotas num período de apenas seis anos, entre 1954 e 1960. Em três dessas eleições – duas para o governo do estado e uma para a Presidência da República –, Ademar foi vencido por Jânio Quadros (1917-1992), seu maior rival político. Na outra derrota, ele perdeu para Juscelino Kubitschek (1902-1976) na disputa pelo governo federal.
Em 1962, finalmente Ademar superou Jânio na eleição para o governo do estado. Na campanha, ele explorou a renúncia do rival à Presidência da República em agosto do ano anterior, com apenas seis meses no cargo, e destacou tudo que não se viu durante o curto governo de Jânio: “tranquilidade”, “experiência” e manutenção da “estabilidade democrática e cristã da vida, pautada em muitos anos de luta”.
Na chefia do governo do estado, Ademar participou das articulações para derrubar o presidente João Goulart (1919-1976) e passou a colaborar com os militares que se instalam no poder em 1964. Mas essa colaboração durou pouco. Logo Ademar percebeu que os militares não pretendiam deixar o Palácio do Planalto tão cedo, frustrando seus planos de se candidatar a presidente.
O governador começou então a “bater de frente” com o novo regime. O rompimento com o presidente Castelo Branco (1897-1967) era quase certo, mas ele ainda tentou fazer alianças. Ademar teria procurado o ministro da Guerra, general Artur da Costa e Silva (1899-1969), buscando apoio para permanecer à frente do governo paulista até o fim do mandato. Em troca, sustentaria a indicação de Costa e Silva à presidência. O ministro teria falado do encontro com o presidente Castelo Branco, que afirmou: “Não cogito intervir em São Paulo, mas se o Ademar tentar qualquer movimento, eu o farei”.
Foi o que ocorreu no dia 5 de junho de 1966. O estopim foi a decisão do governo de São Paulo de continuar emitindo títulos da dívida pública e concedendo empréstimos pelo Banco do Estado. Era a desmoralização do esforço do governo federal contra a inflação. Por isso, com base no Ato Institucional nº 2, Ademar foi cassado e teve seus direitos políticos suspensos por dez anos. Aos jornalistas, o ex-governador disse estar surpreso. Não imaginou que “a mesma revolução, para cuja vitória tão decisivamente contribuí, arriscando, naquela altura, a minha vida e este próprio mandato, viesse um dia arrebatar-me os direitos políticos”.
Terminava assim a carreira de um político populista e controverso. Ele morreu de infarto na França três anos depois, em 12 de março de 1969, sem tempo de viver a reabertura e ensaiar uma volta à “danada” da política.
Marli Guimarães Hayashi é autora da dissertação “A gênese do ademarismo (1938-1941)”, defendida na Universidade de São Paulo em 1996.